QUEM TEM MEDO DA NÃO-MONOGAMIA?
- Phirtia Silva
- 16 de set. de 2023
- 7 min de leitura
Para você que abriu este texto, curiosa, já adianto: eu encontrei o amor da minha vida e fui feliz com ele. Portanto, mesmo tendo convicção da sua monogamia, continue lendo. Este escrito não é sobre convencimento. É sobre apontar uma perspectiva, um modo de ser. Nada de geral, vou contar uma história de amor particular. E como qualquer história, importa começar pelo início:

Um belo dia, encontrei um sorriso sincero e radiante, que me cativou na primeira frase, pela pureza e transparência. Embarquei em cada centímetro daquele universo com milhares de probabilidades aleatórias de um encontro entre seres vivos dentre bilhões de outros. A gente queria se ver sempre, estar perto sempre, conversar sempre e rir sempre. De recorrências em recorrências, em dois meses, estávamos morando juntos. Construímos a nossa casa, aprofundamos a frequência, tudo em vista de estarmos ao máximo juntos. Ele era o meu melhor amigo, a pessoa que mais me conhecia, a pessoa que cuidava de mim, que estava ao meu lado para o melhor e para o pior da vida. Os lugares onde não podíamos estar juntos não eram tão bem-vindos quanto antes. A gente foi levando a vida assim: juntinhos, apaixonados. Por anos e anos a fio, construímos amizades, experiências, riscos, planos, ambições, momentos de lazer. Tudo juntos. Ele era a minha pessoa e eu era a pessoa dele. Eu amava cada-centímetro-daquela-vida.
Desde o início, contudo, um incômodo habitava em mim: como um nó na garganta que aumentava e diminuía, respirante. Primeiro, era algo difuso, inexplicável. Uma irradiação. Algo não estava certo, apesar de tudo ser perfeito. Eu neguei o meu incômodo por muito tempo, colocando a culpa até nos hormônios. Era difícil acreditar que, além de amar-cada-centímetro-daquela-vida, eu também odiava-cada-centímetro-daquela-vida. O conflito entre viver o amor ideal e aceitar o meu incômodo foi crescendo como unha-de-gato, ocupando todas as frestas e profundidades, até que, um dia, me vi tão deprimida que precisei escolher o amor por ele ou o amor por mim. E, felizmente, eu me escolhi.
Depois da separação, iniciei um processo de me reconectar comigo mesma: fui morar sozinha, conheci a cidade onde morava sozinha, montei programas e roteiros de solitude. Quis aprofundar esse tempo comigo, como que para me reencontrar novamente. Depois, iniciei um processo de reconstrução de laços perdidos e de expansão para construção de novos laços. Nesta etapa, acabei me reaproximando de uma amiga que, por coincidência do destino, enveredava no universo da não-monogamia. Eu já tinha ouvido falar sobre o assunto, mas de maneira bastante superficial. Então, as nossas trocas foram fundamentais para entender que este movimento estava muito além das relações afetivo-sexuais em relação às quais tanto se colocam holofotes.
Mas, antes de falar sobre não-monogamia, vamos falar, primeiro, sobre o amor romântico.
O amor romântico nasce enquanto ideologia em meados do século XII e tem a monogamia como pressuposto fundamental. Através dela, a mulher é obrigada moralmente a institucionalmente a ser fiel ao homem em relação ao qual estabeleceu o contrato do casamento. Uma das explicações para esta transformação foi a necessidade de assegurar herança para o primogênito. Claro que o casamento, enquanto instituição monogâmica, nunca foi apenas sobre sexo. Pior: foi e é, também, sobre subordinação, abdicação, auto anulação, falta de privacidade, entre outras implicações. Claro que, em 2023, as coisas não são mais como no século XII, certo? Não necessariamente, uma vez que, ao ser ameaçado, o poder hegemônico reelabora as suas estratégias de dominação para continuar no poder. Sem querer entrar em outras complexidades, quantas amigas suas desapareceram ao iniciar um relacionamento romântico? Quantas mulheres reduziram a produção profissional, intelectual e artística ao ingressar em um "relacionamento sério"? Quantas mulheres sofrem violência ou são assassinadas em nome do amor?
O ponto que instigo até aqui é que o "amor" não é apenas um estado físico e psíquico, em que o coração acelera, nos sentimos plenas, felizes e seguras. O amor tem implicações sociais, estruturais e históricas. É, por isso, que a não-monogamia é um movimento político, uma prática antissistema. E, nesse cenário, você pode até ser monogâmica, mas há que levar em conta que orientações políticas podem, também, começar no campo das ideias. Não podemos mudar a nossa estrutura psíquica e nossos condicionamentos sociais de um dia para a noite. Contudo, entender o amor como um ato político-ideológico pode te mover a um estado de desconstrução que, ainda que não se finalize em si mesmo, continua sendo um ato de subversão.
Mas, afinal, o que é a não-monogamia?
Antes de mais nada é importante pontuar que existem diversas pessoas que estudam e produzem intelectualmente sobre a não-monogamia. Eu não sou uma delas. Tentarei apenas traduzir alguns aprendizados que adquiri com colegas que debatem e vivenciam esta realidade. Com isso em mente, o fundamento que mais impactou as minhas perspectivas sobre a não-monogamia foi o da não-hierarquização das relações.
Na não-monogamia política, os afetos e relações que tecemos com as pessoas são diferentes, mas não superiores ou inferiores. Isso quer dizer que o afeto e a relação que construo com um amigo não é inferior a uma relação afetivo-sexual, por exemplo. Isso implica que vou cultivar igualmente aquelas duas relações porque elas são equiparadamente preciosas. Essa ideia me permitiu tornar as minhas relações muito mais profundas e consistentes. Se os afetos tornavam-se tão importantes e não-banais a ponto de se equipararem ao "auge" da relação afetivo-sexual, eles precisavam de um "plus". Dar profundidade a uma relação diz respeito a cruzar diversas fronteiras, as quais geralmente cruzamos apenas com a pessoa escolhida para ser o "amor-maior". Esta pessoa saberá as suas fragilidades, os seus defeitos mais vergonhosos e os seus medos. Ela será delegada a exercer a parte chata do cuidado, de mediação de tensões, entre outras exigências e responsabilidades- afinal, este amor também necessita existir na tristeza e na doença. Quando hierarquizamos, delegamos este campo da vida afetiva a uma única pessoa e, por isso, a relação com ela será a mais visceral.
Outro fundamento muito importante é o de não responsabilizar o outro pela nossa felicidade. Ter uma relação de lógica monogâmica coloca a pessoa amada na posição de única responsável pela felicidade de quem se relaciona. A pessoa "amante" deverá suprir todos os desejos e necessidades da pessoa amada e vice-versa. As duas bandas da laranja precisam se alinhar completamente para caber na equalização das vontades, desejos e perspectivas: precisam querer as mesmas coisas ao mesmo tempo, ter os mesmos pontos de vista, ser suporte da outra nos momentos de tristeza. Se, um dia, você quiser andar de bicicleta, enquanto o seu parceiro deseja assistir um filme, alguém vai ter que abdicar da própria vontade para sustentar a lógica da monocultura afetiva. Se, um dia, você estiver triste e o seu grande amor não tiver condições emocionais de cuidar de você ou de te fazer se sentir melhor, o gatilho da culpa será ativado. Contudo, assumir uma lógica afetiva antissistema é, também, partir do pressuposto de que nós somos os únicos responsáveis pela nossa felicidade. Além disso, cultivar uma rede de afeto é uma forma de, também, expandir e facilitar o nosso acesso à felicidade. Se eu estou com vontade de andar de bicicleta e um afeto deseja assistir a um filme, cada um pode realizar-se com outro afeto. Se estou triste e, por alguma razão, um dos meus afetos não pode me dar o suporte emocional que preciso, posso buscar outra pessoa, sem mágoas ou culpabilizações.
Longe de querer exaurir o tema, a não-monogamia possui uma série de pressupostos: a descentralização do amor romântico; o afeto em rede; a construção de múltiplas e novas formas de afetos; o direito à privacidade; o cultivo a autonomia e ao autoamor; a independência emocional e afetiva, entre muitas outras esferas, incluindo a autonomia sexual.
Este último tópico geralmente é o mais polêmico, pois, como mencionado, a monogamia foi estabelecida enquanto instituição para restringir a autonomia sexual das mulheres, tornando a fidelidade (vide a fidelidade da mulher) um dos seus pressupostos mais inerentes. O amor e o desejo são manifestações psíquicas e biológicas cujas normas não conseguem anular a existência. Nesse sentido, a norma reprime, mas não anula a possibilidade do afeto e do desejo por pessoas múltiplas. O ponto é que a liberdade do desejo e do afeto é socialmente permitida apenas aos homens (apesar de sua sociabilidade estar menos interessada neste último, devido a brutalidade estéreo da masculinidade).
Claro que eu não estou dizendo que o seu amor está te traindo ou vai te trair. Estou dizendo que toda a sociedade facilita esse processo para eles. É frequente o relato de homens monogâmicos curtindo os stories (no sigilo, claro) de mulheres de biquíni. Um grande incômodo para muitas mulheres mono. A expectativa é que o desejo seja regulado até mesmo na imaginação. Mesmo no campo do flerte, os homens mono estão mais no jogo do que as mulheres se permitem estar, porque até este ou a curtida do story tem uma balança de culpa desigual entre homens e mulheres. Mas, por que reprimir desejos e, sobretudo, possibilidades de afetos? E mais: por que reprimir o desejo e possibilidades de afetos para as mulheres, já que a monogamia nunca foi pensada para os homens? As certidões de nascimento sem o nome do pai são preocupações maiores no Brasil do que o controle de herança. Já é 2023, deixem as mulheres transarem em paz. Ainda mais em um cenário em que a maior parte das heterossexuais nunca atingiu ou não consegue atingir o orgasmo com frequência. Imagina só a gente saindo transando por aí, fazendo igual a teste drive, né? (Brincadeira, meninas. Mas, se quiser, pode).
Brincadeira à parte, é importante ressaltar que a não-monogamia não é sobre quantidade. Você pode ser não-mono mesmo se relacionando com apenas uma pessoa. Você pode ser uma pessoa não-mono assexual, inclusive. A não-monogamia é sobre a construção política de formas menos restritivas de amar e desejar a vida na plenitude das suas possibilidades. E, inclusive, é super importante pautar a descentralização do sexo como elemento de fortalecimento do vínculo afetivo, porque é exatamente nessa lógica que hierarquizamos relações: não transamos com os nossos amigos, então, eles são menos importantes. Mas, lembrem-se, existem muitas formas de gozar nessa vida.
Mesmo assim, importa falar sobre sexo, uma vez que ele é profundamente demarcado moralmente para as mulheres, sobretudo através da lógica do casamento (ou seja, da lógica monogamia). A moral cristã, há séculos, prega que o sexo fora do casamento é sujo e pecaminoso. A lógica monogâmica está embebida destes fundamentos. Neste contexto, a não-monogamia também almeja descontruir o sexo a ponto de nem banalizá-lo, nem imaculá-lo. E, deste modo, está a serviço da emancipação das mulheres.
"Ah, acho super interessante. Mas só teoricamente". Tudo bem. Desconstruir leva tempo. É um processo complexo e doloroso. Inclusive, já conheci muitas pessoas que já se entendiam enquanto não-mono, mas ainda reproduziam comportamentos super monogâmicos. Estamos todas no mesmo barco. Estamos aprendendo.
No final das contas, a monocultura dos afetos trazida pela ideia de "amor da minha vida" só me fez amar menos. Depois de abdicar deste modo de vida, me encontrei amor-da-minha-vida e encontrei muitos outros amores-das-vidas-deles que, hoje, caminham junto comigo vida-adentro.
Dedico este texto à todos os amores da minha vida, incluindo eu.
Autoria: Phirtia Silva. Cientista Social pela Universidade de São Paulo.
Nossa, Phi, quando tu dizes "No final das contas, a monocultura dos afetos trazida pela ideia de "amor da minha vida" só me fez amar menos." me fez lembrar do texto da Geni Nunes que ela fala sobre a alegria de compartilhar amores. Ver quem eu amo vivendo e compartilhando as alegrias, frustrações, paixões e expectativas comigo alimenta um espaço de confiança tão mais vulnerável e honesto. E que precioso e corajoso olhar pra isso com sinceridade, mesmo com os desconfortos. Mesmo com as inseguranças. Na verdade eu acho que é desse lugar, de guarda baixa e coração aberto, que consigo olhar mais pra mim: minhas questões, meus limites, minhas vontades, desejos, afetos... porque quando tiro o outro desse lugar…